post

Artigos 16/11/2006

Súmula de Efeito Vinculante: Solução ou Agravante à Crise do Judiciário?

Há alguns anos, vem se procurando soluções para a crise instaurada no Poder Judiciário. Pela delonga irracional dos julgados, avolumam-se movimentos de reforma do processo, sobretudo no ordenamento brasileiro, em que essa realidade é das mais dramáticas.

Atualmente, muito se discute acerca do efeito vinculante das Súmulas emanadas dos Tribunais Superiores. O efeito vinculante tem por objetivo evitar que uma demanda judicial, cujo conteúdo substancial já tenha sido objeto de discussão e julgamento por parte do judiciário, em várias outras demandas, seja novamente submetido ao órgão julgador.

O tema, ao contrário do que se mostra em uma análise superficial, requer para o seu correto e perfeito entendimento uma análise mais aprofundada, devidamente inserida no atual contexto de nosso país.

É sabido que com o advento da Constituição Federal de 1988, inúmeras conquistas, nunca antes imaginadas, tornaram-se, pela sociedade, minimamente acessíveis, quer do ponto de vista jurídico, quer do sócio-político, a nova Carta Magna representou um verdadeiro avanço, na medida em que, aos jurisdicionados, assegurou a defesa de uma gama de direitos fundamentais imprescindíveis à viabilização dos fenômenos sociais, marcados pela transição de uma estrutura de Estado, eminentemente totalitária, para outra de cunho democrático.

Nesse sentido, a instauração da Nova Ordem Constitucional, embora representasse verdadeira novidade para a sociedade brasileira – marcada pelos longos anos de ditadura -; proporcionou aos cidadãos um sentimento de seguridade jurídica, pois através de mecanismos próprios, dentre eles o processo judicial, vislumbrou-se novas perspectivas na defesa de direitos fundamentais.

Com base nessa assertiva, poder-se-ia afirmar que, na medida em que se apresentavam novas possibilidades de acesso à justiça e ampliava-se o rol de direitos fundamentais em razão proporcional, e de forma vertiginosa, o número de demandas crescia.

Tal fato, de certa maneira, surpreendeu o judiciário, serviço totalmente despreparado (e de certa forma dependente do poder central) no que se referia ao enfrentamento da nova realidade imposta.

Sendo assim, atualmente, não parece assustadora qualquer informação que nos reporte à pronta idéia acerca do colapso do qual tem sido alvo o Poder Judiciário. Como é cediço, a crise chegou a um patamar, crítico, de forma a evidenciar pontos negativos, tais como a morosidade da justiça e o conseqüente acúmulo de processos, tornaram-se fatos capazes de comprometer a atividade jurisdicional.

Diante disso, diversas e respeitáveis propostas surgiram no intuito de contribuir para o desafogamento da máquina judiciária.

Com vias a minimizar estes problemas ações significativas vem sendo tomadas. Nota-se que há uma eminente preocupação por parte do legislador de dotar o judiciário de meios capazes a garantir uma rápida e, por conseqüência, efetiva, entrega da tutela jurisdicional. Vejamos como exemplos desse ideal a Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, bem como a conciliação, a mediação e a arbitragem e tantos outros exemplos que demonstram de forma inequívoca as tentativas de se abreviar as demandas, representam o esforço da comunidade jurídica na solução do problema.

No entanto, as inúmeras tentativas esbarram no imenso sistema recursal previsto em nosso ordenamento, que se de um lado tende a assegurar a ampla defesa, propicia também a postergação interminável das demandas. Tal fato resulta em prejuízos de toda ordem: moral, material, e o pior de todos – a descrença na eficácia da lei e do aparelho jurisdicional.

Os tribunais estão abarrotados de processos cujas matérias já foram julgadas, objeto inclusive de edição de súmulas, que impedem que os julgadores possam dispensar a devida atenção e cautela à análise de cada caso.

Frente a essa questão, para parte da doutrina e da jurisprudência, a atribuição do efeito vinculante às Súmulas e aos Enunciados revelar-se-ia importante meio propiciador de um Judiciário mais eficiente e de uma justiça mais célere, visto que decisões, cujas argumentações basicamente são as mesmas, poderiam ser utilizadas na solução de casos outros, o que dispensaria, em tese, a interposição de inúmeros recursos de mesmo conteúdo jurídico-argumentativo.

Em face da relevância de que se revestiam as discussões sobre o efeito vinculante das súmulas, há invocações na doutrina e da criação do direito sumular.

Esse ramo do Direito, se assim pode ser definido, é fruto da importância da construção jurisprudencial para a dinamização da norma jurídica.

Suas raízes primitivas podem ser atribuídas aos assentos das cortes portuguesas. Com origem na Casa de Suplicação do império português, os assentos eram enunciados do Supremo Tribunal de Justiça. Este instituto perdurou até 1995, até ser revogado em conseqüência da reforma processual naquele país. Sua extirpação, provavelmente, deu-se em função do rigor exigido na mutabilidade dessas súmulas, de tal forma que só se poderia revogá-las ou alterá-las em virtude de lei.

No Brasil o movimento manifestou-se através da criação das súmulas, com o intuito de enunciar as matérias reiteradamente decididas, demonstrando assim a inclinação da Corte quanto a essas matérias, o que inspirou o Poder Judiciário na formação do direito sumular no ordenamento jurídico pátrio.

A teoria das súmulas, ao que se vê, parece mais adequada ao sistema brasileiro, romano-germânico, do que o stare decisis americano, que com ele não se confunde. Pelo stare decisis, pode-se fazer a subsunção de um julgado emanado de qualquer órgão judiciário para qualquer outro, e o magistrado que recebe o caso, se verificar a especificidade, a ele se vincula.

A única exceção feita é a Suprema Corte, onde seus nove juízes têm o poder de avaliar a relevância constitucional da matéria, e somente apreciam o recurso após a concessão do que chamam writ of certiorari (decisão emanada da Suprema Corte, sobre que casos devem revisar).

A adoção do stare decisis em um país que adota o sistema consuetudinário, e tem produção legislativa escassa, tal como os Estados Unidos, pode ser um instrumento eficaz, vez que a jurisprudência se revestirá de uma carga normativa maior, dado o maior número de lacunas deixado pelo legislador. Não é o caso das súmulas que, podem ser definidas como um entrelaçamento de reiteradas decisões; as súmulas seriam, assim, um processo final de formação de uma construção jurisprudencial, que ganha relevância no seio de um órgão judiciário hierarquicamente inferior. Aplicando-se nos pretórios nacionais o stare decisis, poder-se-ia aceitar que uma decisão, qualquer que seja, mesmo advinda de um tribunal de mesmo nível hierárquico ou mesmo grau inferior, tivesse mais valor do que o convencimento a ser esposado em outro julgamento, evitando que o juiz faça uma apreciação detalhada dos fatos.

Ademais, a unidade de entendimento que deve ser garantida é a nacional, vez que a competência legislativa da grande maioria das províncias jurídicas cabe à União, ao contrário do ordenamento norte-americano, onde a competência legislativa nacional é residual.

O efeito vinculante das súmulas deve ser instrumento de respeito à estrutura hierárquica do Poder Judiciário, não de limitação aos subsídios de convencimento do magistrado.

Isso porque o juiz julga segundo as leis e não a sua bondade. Não se deve julgar de acordo com os precedentes, mas de acordo com as leis. A norma é anterior à sentença, não decorrente dela. Não compete ao órgão jurisdicional dizer o direito em tese, mas compor conflitos de interesse. O juiz declara a vontade da lei, que não emana da sentença, porém do momento em que se dá a sua violação. A vontade da lei preexiste à decisão judicante. Importante analisar neste aspecto as duas correntes doutrinárias existentes no Sistema Jurídico Brasileiro, a primeira que considera a Súmula de efeito vinculante seria uma solução para a crise instaurada no Poder Judiciário, e a segunda que considera uma agravante.

A corrente doutrinária a favor da adoção das Súmulas de efeito vinculante no Sistema Jurídico Brasileiro o faz com base nos Princípios da Celeridade e da Economia Processual. Reafirma a necessidade das Súmulas, mas atribui a elas o caráter vinculante das decisões de juízes inferiores, em nome da agilização dos processos. Argumenta, portanto, a necessidade de descongestionamento da máquina judiciária, que como é sabido, encontra-se caótica, em virtude da numerosidade de processos a serem julgados.

Além disso, baseia-se na premissa de que o Estado Democrático de Direito deve o tratamento igualitário a todos os cidadãos, pois se tal não ocorresse, estaria ele admitindo a duplicidade de soluções a situações fáticas idênticas e, ao mesmo tempo, estaria abolindo a função pacificadora, que lhe deve ser típica. A questão prática, que pugna pela celeridade processual, exemplificar-se-ia, aqui, por determinada Súmula que se mostrasse capaz de reduzir o então comum número de recursos, a fim de evitar que os mesmos se apresentassem protelatórios e emperradores de todo o processo.

A segunda corrente, que se contrapõe à adoção das Súmulas de efeito vinculante, defende a tese de que a mesma é incompatível com uma infinidade de Princípios Processuais, e sobretudo, Constitucionais.

Como é notório, os Princípios Gerais de Direito, sobretudo de Direito Processual, como o próprio nome indica, caracterizam-se por tudo aquilo que, sendo base ou fundamento do Sistema Jurídico, é capaz de informá-lo e de caracterizá-lo, a ponto de enfocar as suas peculiaridades, diferenças, e mesmo similaridades com outros Sistemas.

Nesse sentido, tem-se que não há como se construir ou se promover qualquer inovação na sistemática processual que não se paute no respeito aos Princípios Constitucionais, haja vista ser a Constituição a expressão máxima do Paradigma do Estado Democrático de Direito.

A primeira conseqüência da inserção da Súmula de efeito vinculante no Sistema Brasileiro traduz-se na clara afronta ao disposto no artigo 2º da Constituição Federal de 1988, pois, vê-se atingido o Princípio da Separação dos Poderes, o da independência e do livre convencimento motivado dos Juízos inferiores, uma vez que se faz presente a hipertrofia dos poderes dos órgãos judiciários colegiados – em especial o STF -, de um lado, e a atrofia dos demais Poderes, mormente o Legislativo, do outro.

Ora, se nem mesmo o Poder constitucionalmente legitimado à criação da Constituição e das demais leis tem a prerrogativa de impor interpretação obrigatória às normas que disciplinam as relações sociais, por que haveria de tê-lo o Poder Judiciário?

A operacionalização da inserção da Súmula de efeito vinculante encontra óbice, uma vez que caracteriza a supervalorização do Poder Judiciário, o que viola a regra constitucional consubstanciada no artigo 5º, inciso II, da CF/88, segundo a qual: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, cláusula pétrea não passível de alteração pelo poder constituinte derivado.

Patente, a absoluta inviabilidade de se introduzir o instituto do precedente absolutamente vinculado nos sistemas jurídicos da família romano germânica. Nestes, como é cediço, a fonte primária do direito é sempre a lei, isto é, a norma geral e abstrata emanada do Poder competente, o qual no regime democrático, é o próprio povo, diretamente, ou os seus representantes legitimamente eleitos que formam o órgão estatal legislativo. Os juízes não têm legitimidade democrática para criar o direito, porque o povo não lhes delegou esse poder.

As discussões acerca da aplicabilidade das Súmulas de efeito vinculante esbarram na diversidade de sistemas jurídicos, dentre os quais, destacam-se o “Civil Law”(Direito positivado em normas escritas/leis) e o “Common Law”(Direito costumeiro).

Enquanto no sistema de Common Law, a jurisprudência exerce o papel de consolidar as decisões emanadas pelos Tribunais, fazendo com que os juízes de primeira instância respeitem as decisões da Instância Superior, no de Civil Law, tal função é desempenhada pelas próprias leis, incidentes sobre todos os cidadãos, que a elas se vinculam.

Portanto, diferentemente daquele sistema, a jurisprudência tem função oposta, visto que não é enrigecedora do ordenamento. Em sentido oposto, ela oferece a necessária mobilidade ou flexibilidade, da qual necessita o estado, em especial aqui o Brasileiro, para regular as diferentes situações fáticas que lhe são apresentadas pela sociedade.

A imposição aos juízes inferiores de se adotar o efeito vinculante às Sumulas, ocasionariam a violação dos poderes, bem como a afronta ao princípio do duplo grau de jurisdição.

É justamente aí que se situa um dos imensuráveis inconvenientes da adoção do caráter vinculativo das Súmulas. Estas, se adotadas em conformidade com seu sistema originário (de Common law), podem estagnar todo o sistema brasileiro, revelando-se como uma agravante à crise instaurada no Poder Judiciário.

Introduzir num sistema jurídico de “Civil law”, a Súmula de efeito vinculante, por sua vez característica do sistema de “Common law”, atropelando os Princípios Processuais e Constitucionais do estado, é trair o ideal de justiça do Estado Democrático de Direito.

Isso porque, cabe ao Estado Democrático de Direito o dever de oferecer meios para que o cidadão não só exerça o direito à Justiça e ao Devido Processo Legal, mas para que participe na vida política, através das leis, e na jurídica, através do Processo justo, manifestando o seu direito ao contraditório e a ampla defesa, bem como os demais previstos no ordenamento jurídico.

A celeridade e a economicidade, embora sejam, em geral, benéficas ao desenvolvimento do processo, nem sempre correspondem às condições necessárias, tampouco suficientes, da efetiva justiça, pois de nada vale a prática regular de atos processuais, se não se permite às partes a participação ampla e irrestrita na construção do provimento, e, conseqüentemente, a reafirmação da construção do paradigma democrático do Estado em que se inserem.

Tais Princípios proporcionam, isto sim, a solução das controvérsias de forma mais rápida, mais eficaz, porém, nem sempre de forma mais satisfatória.

Ora, o caráter emergencial da solução dos litígios não se confunde com a efetividade da prestação jurisdicional. De tal forma que, apesar de se constituírem importantes Princípios Processuais, a observância da Celeridade e da Economia Processual não deve ser feita em detrimento de outros Princípios também recepcionados pela Constituição Federal da República.

Assim, a inserção da Súmula de efeito vinculante no sistema Jurídico não constitui a solução para crise do Poder Judiciário mais eficaz para que seja assegurada a efetividade da justiça. Primeiro porque demasiado ingênuo pretender que a integridade dos Juízos inferiores do país encampasse, passivamente as teses sufragadas pelos Tribunais. Segundo, porque, ainda que se instituísse a punição dos juízes por crime de responsabilidade pela não observância do precedente, a mínima conseqüência seria a petrificação, o engessamento do complexo e dialético do sistema, pois da mesma forma, seria, ainda, mais ingênuo pretender-se que todos os juízes julgassem contra o precedente.

Temos ainda um longo caminho a percorrer, na busca incansável de uma solução eficaz, à crise do Judiciário!

Fonte: Almeida Advogados
– Tatiana Silva Maillefaud

VER TODOS OS ARTIGOS E NOTÍCIAS VER TODAS