Cada vez mais interligados, os temas Propriedade Intelectual e Direito Digital estão sendo repercutidos principalmente nas atuais discussões relacionadas à privacidade e proteção de dados. Tal intercessão pode ser identificada na recente notícia veiculada[1] envolvendo o recebimento por usuários de plataformas de torrent[2] de notificações extrajudiciais exigindo o ressarcimento em milhares de reais pelos compartilhamentos indevidos de filmes, despertando o questionamento quanto à proteção da privacidade na defesa dos direitos de propriedade intelectual, e a onda de medidas similares que se forma conforme noticiado.
Isto porque a utilização de dados pessoais na identificação dos noticiados violadores do direito de propriedade intelectual teria causado surpresas por parte destes, e traz à tona as discussões referentes aos métodos e fontes de consulta utilizados no exercício dos direitos dos titulares de direito de propriedade intelectual versus os direitos dos titulares de dados pessoais.
Os direitos de propriedade intelectual, no Brasil protegidos principalmente pelas Leis 9.279/96 – Lei de Propriedade Industrial (marcas e patentes), 9.610/98 – Lei de Direitos Autorais e 9.609/98 – Lei dos Programas de Computador (software), trazem uma importante característica que impõe um verdadeiro ônus aos seus titulares: o poder-dever de fazer valer seus direitos (enforcement).
Tal característica faz com que os titulares dos direitos de propriedade intelectual tenham que agir na defesa de seus interesses, provocando diretamente os violadores e terceiros envolvidos na violação, sobretudo as autoridades policiais quando da comunicação dos crimes contra a propriedade intelectual e judiciais cíveis e criminais. O combate à oferta ilícita de produtos contrafeitos e cópias não autorizadas de obras protegidas por direitos autorais (popularmente chamados de “piratas”) em sites de streaming e armazenamento de músicas e filmes hospedados em servidores localizados na região econômica da União Europeia (EU) também tem sido objeto de questionamentos, inclusive perante a ICANN[3]. Uma vez que depende da identificação dos violadores para a devida persecução criminal e reparação civil e até mesmo a simples remoção ou indisponibilização, a necessidade de obtenção das informações que permitam identificar os titulares de domínios torna-se fundamental no exercício dos direitos dos titulares de propriedade intelectual.
Por sua vez, as legislações de proteção à privacidade estabelecem as fundamentações legais para utilização de dados pessoais. Previstos na Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei 13.709/2018) – em seu artigo 7º e no General Data Protection Regulation – GDPR (Regulamento 679/2016) – em seu artigo 6º, tais fundamentações ou “bases legais” vão muito além do simples consentimento, de aplicação inviável nos casos de violação de direitos, encontram na defesa de direitos ou interesses vitais (1 ‘d’ do GDPR e inciso VI da LGPD), e o legítimo interesse (1 ‘f´ do GDPR e inciso IX da LGPD) legitimações que permitam o uso legal dos dados pessoais no enforcement de propriedade intelectual.
Recentes decisões por ocultar ou dificultar o acesso às informações referentes aos titulares de domínios de internet pelos registradores de domínios (registrars) trazem importantes consequências, em especial pela possibilidade de beneficiar cibercriminosos, incluindo fraudadores e violadores de direitos de propriedade intelectual, sob a proteção das regras de privacidade, em detrimento dos legítimos titulares dos direito de propriedade intelectual e da necessidade de fazerem valer seus direitos.
Desde antes da entrada em vigor do GDPR, decisões advindas de sua aplicabilidade resultaram na ocultação de informações de titulares de domínios localizados na EU, como foi o caso da GoDaddy Inc.; quanto aos outros, como no caso da EPAG – empresa alemã parte do grupo Tucows –, anunciaram que não apenas não forneceriam para consulta, como nem mesmo coletariam informações administrativas e técnicas de domínios por ela administrados.
No Brasil, apesar de a entrada em vigor da LGPD em setembro de 2020, as discussões ainda estão muito aquém do que deveriam estar. Se, com a publicação do GDPR em 2016 e sua entrada em vigor em 2018 geraram questionamentos por parte de diversas entidades protetoras de direitos de propriedade intelectual, até o presente momento pouco tem sido falado por parte do NIC.BR quanto à continuidade ou não da disponibilização das informações de cadastro de domínios pelo whois do Registro.br.
Tal fato pode trazer insegurança quanto ao posicionamento oficial que a entidade adotará, principalmente quanto às possíveis repercussões decorrentes no caso da imposição de maior dificuldade ou até mesmo impossibilidade no acesso às informações de whois aos titulares de direitos de propriedade intelectual na defesa de seus direitos.
*Márcio Chaves é é sócio responsável pela área de Direito Digital do Almeida Advogados, com 20 anos de experiência jurídica, acadêmica e profissional. Atuou pelo Almeida Advogados nas unidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, além de Turim/Itália e Genebra/Suíça, onde fez seu mestrado em Propriedade Intelectual.
[2] Redes de compartilhamento descentralizados de arquivos P2P a exemplo do programa Bitorrent.
[3] Entidade sem fins lucrativos subordinada ao Governo dos Estados Unidos, responsável pela alocação do espaço de endereços do Protocolo da Internet. Disponível aqui.