Um assunto hoje muito em voga para as Prefeituras é a criação de um IPTU que seja progressivo e atenda os requisitos de constitucionalidade a fim de que não seja contestado judicialmente.
O que se discute em geral e primordialmente é o modo pelo qual se permite que o IPTU seja progressivo, especialmente quais são os limites e a forma permitida pela constituição após a promulgação da Emenda Constitucional nº 29, que alterou a redação do artigo 156 da Constituição Federal.
Tentaremos explicar. Anteriormente a promulgação da EC 29 o artigo 156 da Constituição Federal[1] dizia que o IPTU (que é um tributo Municipal) poderia ser progressivo, nos termos da lei, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade. Assim, nos termos desse artigo poderia haver IPTU progressivo desde que servisse para disciplinar comportamento do proprietário do imóvel para fins de que cumprisse a função social do seu imóvel, considerando como função social o uso adequado da propriedade com o fim de atender, em cada uma das vocações locais, o interesse geral. É o que nos meios jurídicos chamamos de tributação com cunho extrafiscal, uma tributação que visa a induzir o comportamento do contribuinte ao atendimento do disposto no plano diretor da cidade.
Isso significa que o tributo pode ser utilizado, em certas situações, como um mecanismo de desenvolvimento de alguma política pública, no caso do IPTU de política urbana. Ou seja, existem situações nas quais o tributo pode funcionar como excelente instrumento de intervenção do Estado na atividade privada, seja para estimular comportamentos desejáveis, seja para propiciar a construção de uma sociedade mais justa.
Naquele momento, antes da Emenda Constitucional, tendo em vista que o artigo 182 da Constituição no seu § 4º, inciso II dizer que o proprietário de terreno urbano deve promover seu aproveitamento de modo adequado sob pena de, entre outras penas previstas, ter o IPTU progressivo no tempo, o Supremo Tribunal Federal passou a entender que a progressividade do IPTU somente poderia se dar com fins extrafiscais e ser progressivo no tempo, ou seja, como os parágrafos 2º e 4º do artigo 182 da Constituição Federal[2] dizem que o IPTU poderá ter alíquotas progressivas desde que a propriedade não atenda às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor e que, a extrafiscalidade seja exercida mediante IPTU progressivo no tempo. O Supremo entendeu que nenhum IPTU poderia ser progressivo, a não ser para esse fim e desde que fosse progressivo no tempo, ano a ano aumentando as alíquotas como meio de induzir o proprietário a cumprir as diretrizes estabelecidas.
O STF chegou até a editar uma súmula[3] nesse sentido com o seguinte texto: “É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cumprimento da função social da propriedade urbana.”
A progressividade no tempo do IPTU é, portanto, uma penalização imposta ao proprietário do imóvel urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, quando este se negar a dar um adequado aproveitamento a seu imóvel, de acordo com o estabelecido no plano diretor. Tal penalidade é aplicada por lei, após a imposição da penalidade de parcelamento ou edificação compulsória.
A Constituição Federal conseguiu, nesse sentido, diferenciar com clareza aquilo que chamamos de progressividade fiscal e extrafiscal.
KIYOSHI HARADA define o que deva ser entendido por progressividade fiscal e extrafiscal com muita propriedade:
“A progressividade fiscal, decretada no interesse único da arrecadação tributária tem seu fundamento no preceito programático representado pelo § 1º do art. 145 da CF, segundo o qual sempre que possível, o imposto será graduado conforme a capacidade econômica do contribuinte.”
“Já a progressividade extrafiscal tem seu fundamento no poder de polícia… Assim, a progressividade extrafiscal tanto aquela prevista no § 1º do art. 156 da CF ( progressividade genérica) como aquela prevista no § 4º, II do art. 182 da CF (progressividade específica) tem objetivo ordinatório. O fim visado não é o aumento da arrecadação tributária.”[4]
Por isso, os Municípios lutaram para alterar a redação do artigo 156 da Constituição Federal[5], que após 13 de setembro de 2000, passou a prever, não mais que o IPTU poderia ser progressivo com o objetivo de garantir o cumprimento da função social da propriedade, mas que o IPTU, sem prejuízo da progressividade no tempo prevista no artigo 182, pode ser progressivo também em razão do valor do imóvel e ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.
Assim, os Municípios estão passando nas suas respectivas câmaras dos vereadores projetos de lei que estabelecem alíquotas diferenciadas para imóveis residenciais e não residenciais e para os imóveis edificados e não edificados e fazendo a alíquota ser maior quanto maior o valor do imóvel. Entendendo que, desse modo, poderão aumentar suas respectivas arrecadações e, paralelamente, estarão cumprindo o que determina a constituição.
Mas constituição não é interpretada somente com base em um artigo, é necessário fazer a integração de seus princípios e em decorrência disso entendemos que os Municípios continuam agindo de modo absolutamente ingênuo porque novamente estarão sob o manto da inconstitucionalidade. Não basta mudar um artigo da constituição porque a constituição deve ser interpretada sistematicamente e certas questões expressas nela não podem ser alteradas.
A alteração realizada no artigo 156 da Constituição Federal é insuficiente para suprir a vontade arrecadadora das Municipalidades que deverão repensar o IPTU de maneira séria e definitiva, adequando as diferenciações de alíquota a uma política urbana conveniente.
As prefeituras devem olhar primeiramente para aquilo que se planeja para o Município e, em cima desse sistema de regras referentes à direção das cidades que devem ser expressos claramente nos seus planos diretores, em cima do conjunto de objetivos que informam determinado programa de ação governamental e condicionam a sua execução, expressos no plano diretor do Município é que o IPTU pode ser progressivo ou não.
O que isso quer dizer? Isso significa, por ex., que, se em certos setores da Cidade a Municipalidade pretende criar uma zona especialmente não industrial, porque os investimentos que almeja realizar em tal área correspondem a uma infra-estrutura para atender imóveis residenciais e comerciais, conforme previsto no plano diretor, poderá tributar imóveis industriais instalados naquela área com alíquota maior, ou ao contrário em região especialmente preparada para indústrias imóveis residenciais teriam, entretanto, alíquota maior, em zonas mistas, como muitas já existentes seria impossível diferenciar-se, poderiam, igualmente, diferenciar tributação de escolas e hospitais e demais entidades de interesse público. Mas, tudo isso deve seguir um plano diretor adequado, um planejamento sério não feito apenas com o intuito de arrecadar mais, mas, com o objetivo de tornar a qualidade de vida melhor e a urbe mais humana e agradável. Esse é o objetivo maior da Municipalidade, talvez seu único objetivo.
Assim, mesmo que se entenda a possibilidade de ter alíquotas do IPTU diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel ou que o mesmo seja progressivo em razão do valor do imóvel a interpretação sistemática da constituição nos obriga a vincular essas diferenciações a um discrímen lógico, ou seja, um motivo lógico para que haja diferenciação de alíquotas, portanto, essa diferenciação, feita somente após a EC nº 29, deverá respeitar um projeto específico IPTU/Plano Diretor, adequando as diferenciações de alíquota a uma política urbana conveniente.
Para reforçar esse nosso entendimento, lembremo-nos que o artigo 5º da constituição diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. E esse artigo não pode ser modificado, ou melhor, não pode haver sequer qualquer tentativa de diminuir o seu alcance, nos termos determinados pelo § 4º do artigo 60 da Constituição Federal.
Isso também não significa que não pode haver diferenciações, mas, que essas diferenciações devem conter elementos que conjugados tornem lógica a distinção, conforme aprendi com Celso Antônio Bandeira de Mello. Primeiramente, essa discriminação não pode ser tão específica que saia do aspecto geral do contribuinte, ou seja, não pode estabelecer que um imóvel de um tipo específico de uso, situado na rua “tal” e com valor venal de “tanto, de propriedade de fulano, construído há “tanto” tempo terá incidente uma alíquota específica, isso porque a lei deve atingir uma categoria de pessoas e não atingir um só indivíduo.
Por outro lado, é preciso que haja fundamento lógico para se tributar diferentemente com base na localização e o uso do imóvel, ou seja, essa justificativa tem que ser racional. Dois exemplos são procedentes, o primeiro um exemplo absurdo, mas aclarador: digamos que a prefeitura de São Paulo resolvesse estabelecer alíquotas maiores para imóveis localizados nos lados pares das ruas e menores para aqueles localizados nos lados ímpares, essa diferenciação seria evidentemente discriminatória porque alógica, sem fundamento. Imaginemos que a diferenciação fosse a seguinte: imóveis localizados em setores industriais da cidade pagariam alíquota maior que os localizados nos setores residenciais, que objetivo teria essa discriminação, afinal a cidade de São Paulo não quer que aqui se instalem imóveis industriais? Obviamente esse discrímen é, igualmente ilógico. Portanto a diferenciação deve ser embasada em algum elemento coerente, racional.
Aliado a tudo isso, essa diferenciação de alíquotas deve, além de real e logicamente sustentável, ser coerente com os elementos protegidos pela constituição, ou seja, uma política urbana amoldada às vocações do município e o cumprimento da função social da propriedade e isso somente pode ser feito se as diferenciações permitidas pelo artigo 156 e 182 da Constituição Federal forem realizadas em consonância com um projeto urbanístico adequado, por isso anteriormente apontei para o binômio Plano Diretor do Município/IPTU, elementos que não podem ser desatrelados para fins de estabelecimento de alíquotas diferenciadas.
Assim, a progressividade extrafiscal do IPTU garante o atendimento da função social da propriedade, compelindo o proprietário de imóvel urbano a adequar-se ao plano diretor da cidade, na medida em que terá elevada a alíquota no tempo, até que melhore o aproveitamento de seu imóvel. Funcionando o IPTU não apenas com a finalidade arrecadatória, mas também como um verdadeiro instrumento de política urbana.
Essa progressividade extrafiscal depende da edição do plano diretor, que vai indicar qual a função social da propriedade, assim, a “lição de casa” deve ser feita primeiramente pelo município, estabelecer o que se pretende em termos de política urbana para após cobrar o IPTU de maneira extrafiscal, progressivo, salvo no caso de imóveis edificados e não edificados porque, nesse caso, a distinção não necessita de plano diretor. É no plano diretor que estarão as definições para a classificação de propriedades que cumprem a função social e das que não cumprem a função social.
Portanto, não basta fazer alíquotas diferentes para espécies distintas de imóveis é necessário saber quais são necessários para cada região urbana antecipadamente, através do estabelecimento de um plano diretor adequado.
Agindo do modo e com a sanha que estão agindo as prefeituras, novamente estarão cobrando tributo de modo inconstitucional, como certamente julgara o Supremo Tribunal Federal.
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[1] Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I – propriedade predial e territorial urbana;
§ 1º. O imposto previsto no inciso I poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade.
[2] Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§ 2º. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
(…)
§ 4º. É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
[3] Súmula 668.
[4] Sistema tributário na constituição. São Paulo: Atlas, 2001, p. 329/331
[5] § 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o artigo 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá:
I – ser progressivo em razão do valor do imóvel; e
II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.
Fonte: Almeida Advogados
– Sidney Eduardo Stahl