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Artigos 16/11/2006

Da Inexistência de Dano Ambiental por Ato Lícito

Diante das crescentes intervenções negativas que vem sofrendo o meio ambiente nos últimos tempos, pode-se verificar, na sociedade, uma preocupação cada vez maior com as questões que envolvem a sua preservação e, principalmente, o tratamento dado aos seus agressores.

Na esfera jurídica brasileira, o meio ambiente é tratado, em primeiro plano, pela Constituição Federal, que em seu art. 225 estabelece: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Através desse artigo, é possível se depreender importantes considerações feitas pelo legislador sobre a questão. Primeiramente, o mesmo ressalta que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito de todos, portanto, não reconhece a sua titularidade nem ao Estado, nem ao particular, mas sim à coletividade.

Em segundo lugar, atribui o dever de cuidar, preservar e defender o meio ambiente tanto ao Poder Público, como à sociedade civil como um todo, deixando claro que a ninguém é dado o direito de degradá-lo, ou mesmo, de ignorá-lo.

Uma terceira consideração ainda se faz necessária: nem mesmo a coletividade deste momento histórico é a proprietária desse bem, sendo ela mera detentora em prol das presentes e futuras gerações, devendo impedir qualquer agressão que proporcione o desequilíbrio do mesmo.

Sendo assim, uma questão deve ser levantada: se ações que causam danos ao meio ambiente são consideradas antijurídicas, e por isso devem ser impedidas, é possível se falar em dano ambiental decorrente de ações lícitas? Ou seja, é possível haver atividades autorizadas, que proporcionem danos ao meio ambiente, mas, que por serem licenciadas pelo Poder Público, afastam a responsabilidade civil de reparar? A resposta é negativa.

A questão do dano ambiental por ato lícito ou autorizado é um mito, pois, uma vez extrapolados os limites estabelecidos juridicamente, necessariamente o ato lesionador do meio ambiente deverá ser considerado ilícito, não gerando controvérsia sobre a necessidade de reparação e indenização.

Para uma maior compreensão do tema, faz-se necessário esclarecer alguns pontos importantes, como por exemplo, o conceito de meio ambiente. Note-se que a Constituição Federal não chegou a definir o que realmente é o meio ambiente, contudo, o art. 3º, da Lei nº 6.938/1981, que foi integralmente recepcionada pela nova ordem, já tratava do assunto, definindo meio ambiente como sendo “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.

Cumpre ressaltar que o referido conceito deve ser interpretado levando-se em conta não só o aspecto natural do meio ambiente (os rios, o solo, a atmosfera, os animais, a vida), mas também o artificial (formado pelo espaço urbano construído), o cultural (constituído pelos patrimônios históricos, arqueológicos, artísticos, turístico) e o meio ambiente do trabalho (que é o conjunto de condições existentes no local de trabalho relativo à qualidade de vida do trabalhador).

Sendo assim, percebe-se que para se chegar a um conceito de meio ambiente, é necessário relacionar seus vários elementos, buscando sempre o equilíbrio apontado pela Carta Maior. Contudo, não se pode confundir o meio ambiente, bem autônomo e unitário, com a mera união de seus recursos naturais ou artificiais, como se fosse um simples somatório destes.

Considerados isoladamente, “a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora” são recursos naturais, elencados no art. 3º, inciso V, da Lei nº 6.938/81.

A diferença entre o meio ambiente, considerado como um todo, e os recursos naturais é que o primeiro é um bem difuso, ou seja, não pertence ao Estado, nem ao particular, já os recursos ambientais, individualmente considerados, podem ter um regulamento jurídico próprio, inclusive de direito público ou privado, tendo como único traço comum a impossibilidade de seu uso ser lesivo ao meio ambiente como bem autônomo.

Assim, percebe-se que a indisponibilidade existente no meio ambiente não é aplicável imediatamente ao caso dos recursos ambientais, pois a estes pode ser aplicada tanto a indisponibilidade total (como a proibição da caça de animais ameaçados de extinção), restrita (como a pesca, que é proibida em determinadas épocas de reprodução dos peixes) e até mesmo nenhuma (como no caso de árvores, fora da área de preservação, que podem ser suprimidas mediante simples ato administrativo autorizativo, ressalvadas as espécies protegidas).

Contudo, apesar dos recursos naturais contarem com um sistema de proteção um pouco mais brando, a sua utilização deve ser racional e não pode, de forma alguma, vir a prejudicar o equilíbrio do meio ambiente como um todo.

Relacionando a distinção dos conceitos de meio ambiente e recursos ambientais aos tipos de danos sofridos, tem-se que quando há depreciação do primeiro, este é chamado de dano ambiental em sentido amplo. Já quando o dano ocorre a algum recurso natural, recebe a denominação de dano ambiental em sentido estrito.

Tanto em sentido amplo, como em sentido estrito, o dano deve ser considerado como toda lesão intolerável causada por qualquer ação humana (culposa ou não) ao meio ambiente, seja ele considerado como um todo, ou apenas a um de seus componentes, que venha causar desequilíbrio ou que leve à perda da qualidade ambiental.

E sendo assim, configurada a agressão a bens juridicamente tutelados, será necessária a competente reparação, independente da existência de culpa do agressor, tendo em vista tratar-se aqui de responsabilidade objetiva.

Isso porque o Direito Ambiental é regido por alguns princípios que, ao serem desrespeitados, ultrapassam os limites permitidos e acabam gerando a obrigação de indenizar e reparar o dano causado.

Um desses importantes princípios é o da tolerabilidade, que nada mais é do que a noção pacífica de que o meio ambiente possui um certo nível de tolerância à agressões, que faz com que estas não cheguem a causar-lhe um dano ambiental efetivo.

Assim, constata-se que nem toda agressão ao meio ambiente e aos seus elementos causa, necessariamente, um desequilíbrio ou perda da qualidade de vida de seus seres. Contudo, torna-se necessário esclarecer que o meio ambiente é capaz de suportar pressões adversas até um certo limite, além do qual, já se configura lesão que, sozinho, não consegue reparar.

Sendo assim, algumas ações, por mais que sejam de certa forma prejudiciais ao meio ambiente, enquadram-se no nível de tolerabilidade do referido bem jurídico e, neste caso, só geram dever de reparação e indenização, se ultrapassarem os limites e caracterizarem o dano ao mesmo.

Contudo, deve-se ressaltar que o princípio da tolerabilidade, em momento algum, vem a consagrar um direito de degradação ao meio ambiente, muito pelo contrário, surge apenas em busca de um ponto de equilíbrio entre as atividades interativas do homem e o respeito às leis naturais, servindo como um mecanismo de proteção e interação de ambos.

Um bom exemplo da aplicação deste princípio é o de despejo de esgoto em um determinado rio, em pequenas quantidades e após tratamento primário que o livre dos elementos mais nocivos à saúde e ao meio ambiente. Neste caso, é perfeitamente possível através de análises químicas e físicas verificar se o corpo receptor (rio) está conseguindo absorver aqueles rejeitos, sem que haja prejuízo às suas condições naturais.

É claro que torna-se dificílimo estabelecer exatamente os limites de tolerabilidade, que deve ser avaliado caso a caso, em meio a muito bom senso, pois caso a atividade venha a romper o equilibrio ambiental, caracterizado estará o dano e, conseqüentemente, a obrigação de repará-lo.

Ademais, esse princípio deve ser aplicado lembrando-se sempre da indisponibilidade do meio ambiente, ou seja, nenhum ente público ou privado pode dele dispor, alegando estar agindo dentro de seus limites, contudo, praticando uma atividade que venha a causar-lhe degradação ou perda de sua qualidade ambiental.

A dificuldade em se encontrar um ponto de equilíbrio é grande, porém, necessária, pois toda essa proteção ao meio ambiente fomenta um conflito entre o desenvolvimento da sociedade e a sua conservação. Não se pode simplesmente caminhar em direção a apenas um destes valores, seja a preservação do meio ambiente com estagnação do desenvolvimento, seja o desenvolvimento sem a preservação do meio ambiental, pois isso certamente levaria à decadência da sociedade como um todo.

Por essa razão é que, aliando-se ao princípio da tolerabilidade, surgiu também o princípio do desenvolvimento sustentável, configurando-se justamente como o ponto de equilíbrio entre estes dois valores, fazendo com que a livre iniciativa possa se desenvolver, contudo, respeitando a preservação ambiental, caso contrário, será responsabilizada pela reparação do dano causado.

Ainda na tentativa de coibir-se abusos ecológicos, o Direito Ambiental ainda conta com o princípio da prevenção, que visa evitar a ocorrência de prejuízo ao meio ambiente. É um princípio contrário a comportamentos apressados, precipitados, mas sim pautados em medidas calculadas, capazes de impedir danos totalmente previsíveis.

É claro que a reparação do dano é um fator importante, contudo, devido à extrema dificuldade ou mesmo impossibilidade de fazê-la em alguns casos, tornam-se mais preciosos os esforços realizados para se evitar que a agressão ocorra.

A partir dessa idéia, nasce para o Poder Público um dever de impor certos limites à atividades que potencialmente podem causar danos ambientais, de forma a previnir a manutenção do equilíbrio ecológico.

São decorrência deste princípio as limitações levadas a efeito pela Administração Pública quando, por exemplo, estabelece a quantia de poluentes máximos (padrões de qualidade ambiental) a serem emitidos por carros, fábricas, etc, ou ainda, quando declara a temperatura máxima das águas utilizadas no resfriamento da produção industrial, ao serem lançadas aos rios.

Percebe-se que a fixação destes limites tem ligação extremamente estreita com o princípio da tolerabilidade, pois somente serão implementados na medida em que não ultrapassem o limite de tolerância do meio ambiente à agressões.

Diante de todos esses princípios elencados acima, percebe-se de forma clara que o meio ambiente é um bem jurídico amplamente tutelado, contando com uma gama de instrumentos jurídicos aptos a impedirem que o mesmo seja agredido.

Mais do que simplesmente impedirem atividades danosas ao meio ecológico, também criam ao agressor uma obrigação de reparar e indenizar, caso venha a causar algum prejuízo ambiental.

Sendo assim, qualquer dano que destrua o equilíbrio do meio ambiente, é resultado de uma ação ou atividade que não respeitou as normas de precaução e, principalmente, que ultrapassou todos os limites de tolerância estabelecidos, não podendo essa ação, de forma alguma, ser classificada como lícita.

Portanto, ultrapassando o limite da tolerabilidade do meio ambiente, destruindo o seu equilíbrio ecológico, conclui-se que a ação viola, indiscutivelmente, a Constituição Federal, instrumento jurídico máximo nacional, e, portanto, deve ser condiderada ilícita e antijurídica.

Torna-se irrelevante que, na tentativa de esquivar-se da responsabilidade de indenizar, o agente alegue que sua atividade foi previamente autorizada pela Administração Pública ou que tenha agido dentro de padrões previamente estabelecidos por esta.

Ora, se o Poder Público, assim como o particular, não tem disponibilidade sobre o meio ambiente, é destituída de qualquer validade a autorização ou licença concedida à atividade que venha degradá-lo, restando ao agressor, independente de ter ou não agido com culpa, a responsabilidade de reparação do dano.

Sendo assim, a licença ambiental apenas retira o caráter de ilicitude administrativa do ato, mas não é apta a liberar o empreendedor licenciado de seu dever de reparar o dano ambiental. A ausência de ilicitude administrativa apenas irá impedir que a Administração Pública aplique alguma sanção ambiental, porém, nem por isso haverá irresponsabilidade civil.

Conclui-se, portanto, que se houve uma atividade causadora de prejuízos ao equilíbrio ambiental, esteja ela previamente autorizada ou não, não há o que se falar em ação lícita, portanto, resta evidente a obrigação do responsável de proceder a reparação e indenização dos danos causados.

Fonte: Almeida Advogados
– Aline de Campos Fumeiro

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