I. Introdução:
Atualmente as Sociedades Limitadas são regidas pelos artigos 1.052 a 1.087 da Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (“Código Civil”) e, na omissão destes dispositivos, pelas normas da sociedade simples[1]. O Código Civil ainda autoriza que as Sociedades Limitadas sejam regidas supletivamente pelas normas das sociedades anônimas (Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, com alterações da Lei 10.303 de 31 de outubro de 2001) (“LSA”), acaso assim seja estabelecido no contrato social.
O novo ordenamento determina que o capital das sociedades limitadas pode ser dividido em quotas iguais ou desiguais, sem estabelecer, de forma clara, as desigualdades que seriam poderiam ser abrangidas. Assim, ainda que seja evidente a referência à desigualdade do valor unitário das quotas, não resta claro se este conceito poderia ser aplicado aos direitos conferidos pelas quotas as seus titulares, em especial ao direito de voto.
A legislação anterior[2] aplicável às sociedades limitadas, ainda que autorizasse a regência supletiva pelas leis das sociedades anônimas, nada dispunha sobre quotas preferenciais. Desta forma, muitas sociedades, com respaldo justamente na lei das sociedades anônimas, previam em seu contrato a criação de quotas preferenciais.
A nova legislação, apesar de reforçar a possibilidade de incidência supletiva lei das sociedades anônimas nas Sociedades Limitas, também é omissa quanto à possibilidade de criação de quotas preferenciais.
Por outro lado, o Código Civil criou dispositivos contrapostos à existência de espécie de quota que, conjuntamente considerados, geram dúvidas sobre a possibilidade das sociedades limitas ter seu capital dividido em quotas ordinárias e preferenciais.
O presente artigo tem por objetivo ventilar a questão relacionada à criação de quotas preferenciais, sem direito de voto, com prioridade na distribuição de dividendo, fixo ou mínimo e no reembolso do capital, não sendo aqui aborda a questão relativa à quotas preferenciais com direitos políticos diferenciados, em paralelo à figura da golden share no âmbito da LSA, o que daria ensejo a outro debate.
II. Ações Preferências na Lei das Sociedades por Ações:
Qualquer posicionamento favorável à possibilidade de criação de quotas preferenciais em sociedades limitadas funda-se na aplicação subsidiária da LSA, que deverá estar expressamente prevista no contrato social. Assim, os parâmetros das quotas preferências são importados daqueles utilizados nas ações preferenciais das sociedades anônimas de capital fechado.
Nesse sentido, antes que adentrarmos especificamente na questão incontroversa da possibilidade ou não de criação de quotas preferenciais em sociedades limitadas, mister faz-se destacar os parâmetros e particularidades que qualificam e diferenciam as ações preferenciais das ações ordinárias no âmbito da LSA.
Conforme dispões o artigo 17 da LSA, as ações preferenciais de emissão de companhias fechadas podem deter, conforme disposto no respectivo Estatuto Social, as seguintes vantagens ou benefícios: (i) prioridade na distribuição de dividendo, fixo ou mínimo; (ii) prioridade no reembolso do capital, com prêmio ou sem ele; ou (iii) na acumulação de preferências e vantagens referidas nos itens (i) e (ii) acima.
Ademais, as ações preferências podem possuir ou não direitos de voto. Via de regra as ações preferenciais não dão aos seus acionistas o direito de voto, razão pela qual, geralmente, os preferencialistas não participam das decisões estratégicas da empresa. Em geral, trata-se de ações que conferem benefícios econômicos e de maior liquidez em detrimento dos poderes de gestão.
Como mencionado, o Estatuto Social da Companhia poderá estabelecer o recebimento de dividendo fixo ou mínimo, independentemente da cumulação ou não da prioridade no reembolso do capital.
O dividendo fixo é estabelecido com base em um valor fixo, expresso em moeda corrente nacional, ou passível de ser determinado através de uma fórmula matemática que expresse o resultado em moeda corrente nacional, independentemente do valor do lucro auferido pela companhia no exercício anterior.
Quando o lucro do exercício foi igual ou inferior ao valor devido aos preferencialistas a título de dividendos, estes receberão todo o lucro, em detrimento dos acionistas ordinários.
Por outro lado, havendo lucro suficiente, os preferencialistas serão pagos e, posteriormente, o restante do lucro será distribuído aos acionistas ordinários ou alocado para fundos de reservas. Sendo assim, no caso dos dividendos fixos, os acionistas preferencialistas receberão tão somente o valor determinado para cada ação, independentemente de haver lucro excedente.
Os dividendos mínimos são exatamente iguais aos dividendos fixos, com exceção à distribuição de lucros remanescentes, após a distribuição dos dividendos mínimos. Sendo assim, após os acionistas ordinários receberem dividendos iguais aos recebidos pelos preferencialistas, estes farão jus a um dividendo adicional, correspondente ao saldo dividido proporcionalmente entre os acionistas ordinários e os preferencialistas.
Por outro lado, a faculdade passível de ser conferida aos acionistas preferencialistas, nos termos do item (ii) acima, correspondente à prioridade no reembolso do capital em situações em que a empresa entra em processo de falência ou de dissolução. Nesse caso, o acionista preferencialista teria prioridade no recebimento dos recursos oriundos da venda dos ativos da companhia.
III. Posicionamento do DNRC e Juntas Comerciais:
1. O Departamento Nacional de Registro do Comércio (“DNRC”), tem por competência a estabelecer e consolidar, com exclusividade, as normas e diretrizes gerais do registro público de empresas mercantis, solucionar dúvidas ocorrentes na interpretação das leis relacionadas com o registro público de sociedades, prestando orientações às Juntas Comerciais de todos os estados e distrito federal, com vistas à solução de consultas e à observância das normas legais e regulamentos do Registro Público de Empresas Mercantis.
2. A função do DNRC de homogeneizar os julgamentos e posicionamentos de todas as juntas comerciais é extremamente saudável e deve ser incentivada, sob pena de um mesmo documento ser aceito em uma junta comercial e rejeitado pelo órgão correspondente em outro estado. Na prática, julgamentos divergentes podem causar grandes transtornos a sociedades que possuem ou pretendem abrir filiais em outros estados da federação.
3 Com relação ao tema em comento, o DNRC já se manifestou no sentido de que “não cabe para sociedade limitada a figura da quota preferencial”[3], posicionamento esse que deverá repercutir nas juntas de todo país. Sendo assim, é bem provável que as juntas comerciais de todo o Brasil estejam negando o pedido de qualquer registro de contrato social ou alterações que aprovem a criação de quotas preferenciais.
4 Tendo em vista a posição do DNRC sobre o tema, a Junta Comercial de Santa Cataria (“JUCESC”) já se manifestou publicamente no sentido de que “Falta amparo legal para a existência de cotas preferenciais, haja vista estipulação legal descrita no artigo 1.055, que especifica quotas de valores iguais ou desiguais e não cria espécie alguma de quotas. A ação na sociedade anônima é considerada um título de crédito, enquanto as quotas são, tão somente, parcelas do capital pertencentes a sócios com direito de venda regulada pelo contrato, enquanto as ações são reguladas pelo mercado”.[4]
IV. Analise sistemática do Novo Código Civil:
O artigo 1.055 do Código Civil apenas mencionada a possibilidade de divisão do capital em quotas iguais ou desiguais, mas não faz qualquer menção a distinção de direitos e obrigações que decorrem de sua propriedade, como ocorre na LSA. Sendo assim, a intenção do legislador sobre o tema tem que ser extraída do contexto geral do referido instrumento normativo, bem como na realidade das sociedades anônimas, em contrapartida às sociedades limitadas, ou seja, através da interpretação sistemática do instituto.
Temos que levar em consideração que as Sociedades Anônimas caracterizam-se por serem sociedades de capital, em que muitas vezes indivíduos se tornam acionistas com o exclusivo interesse de realizar um investimento financeiro, sem qualquer pretensão e interesse na administração Companhia e nas atividades desenvolvidas no seu dia-a-dia. Assim, através de investimentos no mercado de ações, muitos acionistas buscam o retorno do capital investido, geralmente a curto ou médio prazo.
Nesse contexto, a criação de ações preferenciais faz total sentido, posto que, como já mencionado, as ações preferenciais em geral se caracterizam por não terem direito de voto, mas conferirem aos seus titulares vantagens financeiras, como o recebimento de dividendos fixos ou mínimos. Assim, as ações preferenciais possuem maior liquidez e valor de mercado.
Por outro lado, as Sociedades Limitadas caracterizam-se por serem sociedades de pessoas, que se organizam para o desenvolvimento de uma atividade produtiva. Nesses casos os sócios não visam lucros imediatos e, muita vezes, investem durante anos com expectativa de retorno a longo prazo.
Assim, no âmbito das Sociedades Limitadas todos os sócios tem interesse em participar ativamente do desenvolvimento da sociedade e da sua administração. Com isso, não podemos imagina que o direito de voto dos quotistas possa ser suprimido com base na aplicação supletiva da LSA.
O artigo 1.010 do Código Civil, que dispõe “quando, por lei ou pelo contrato social, competir aos sócios decidir sobre os negócios da sociedade, as deliberações serão tomadas pela maioria de votos, contados segundo o valor das quotas de cada um”. Assim, o legislador confere a todo quotista, por menor expressão que tenha a sua quota no capital social, o direito a voto, não cabendo a uma norma supletiva afastar tal prerrogativa.
Com relação a participação nos lucros, o Artigo 1.008 do Código Civil veda a “estipulação contratual que exclua qualquer sócio de participar dos lucros e das perdas” mas, por outro lado, o artigo 1.007 do mesmo diploma legal autoriza seja e estabelece que os sócios participem de forma desproporcional nos lucros e perdas da sociedade.
Ora, se o Código Civil autoriza a distribuição de dividendos e forma desproporcional entre quotistas de uma mesma classe de quotas, é evidente a possibilidade de emissão de quotas diferenciadas, detentoras de preferências no recebimento de dividendos.
V. Conclusão:
Em atenção ao quanto exposto, a despeito da posição infundada do DNRC, contrária à criação de qualquer tipo de quota preferência, resta claro que a nova legislação dá abertura para a criação de quotas preferenciais em sociedades limitadas que tenham em seu contrato a eleição da LSA como norma supletiva. As quotas preferenciais, entretanto, deverão ter direito a voto, devendo o respectivo contrato social determinar claramente os direitos e preferências econômicas conferidas aos quotistas preferencialistas.
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[1] Artigo 997 ao 1.038 do Código Civil
[2] Decreto n.º 3.708/19
[3] Manual de Atos de Registro de Sociedade Limitada, aprovado pela Instrução Normativa n.º 98, de 23 de dezembro de 2004.
[4] http://www.jucesc.sc.gov.br/index.pfm?codpagina=00133
Fonte: Almeida Advogados
– André de Paiva Teixeira