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Artigos 3/5/2005

As ações civis públicas e a proteção do direito do consumidor

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), diploma elaborado no intuito de promover a defesa dos interesses de sujeitos hipossuficientes, notou-se elevado aumento no que tange à propositura de ações objetivando a discussão dos variados assuntos que lhe são correlatos, especialmente no que se refere à preservação de direitos de natureza coletiva.

Isso porque o diploma protetivo elencou, em seu art. 81, três tipos de direitos que ensejam a defesa de matérias comuns a determinados grupos de pessoas, quais sejam, (i) aquelas chamadas de transindividuais e, portanto, de natureza indivisível ligadas por circunstâncias de fato; (ii) aquelas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; e (iii) aquelas que partilham direitos decorrentes de natureza comum.

Dessa forma, com a previsão normativa desses interesses, tornou-se ainda mais efetiva e real a possibilidade de propositura de ações civis públicas, visando à responsabilização dos causadores de danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico ou ainda por infração à ordem econômica, todos previstos pela Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85). Desta forma, tal ação pode ser definida como um instrumento processual utilizado para reprimir ou impedir tais danos, protegendo interesses comuns da sociedade.

No que se refere aos consumidores, assim entendidos na definição do art. 2º da Lei nº 8.078/90, ampliou-se a legitimidade ativa para a propositura de tais ações além daqueles entes inicialmente previstos pelo art. 5º da Lei nº 7.347/85, também para as entidades e órgãos da Administração Pública indireta sem personalidade jurídica destinados à sua proteção e às associações que não tenham sido constituídas há mais de um ano, quando assim entender o Juiz que decidirá a causa.

Sendo assim, e valendo-se da alegação de que a ação civil pública também visa à diminuição do ajuizamento de ações individuais, que acabam atravancando o Judiciário, verificou-se significativo aumento na propositura de tais ações que, todavia, nem sempre traduzem-se da forma mais adequada, seja do ponto de vista técnico, seja sob a ótica da proteção do direito supostamente violado.

Nos últimos meses tornou-se destaque na comunidade jurídica a propositura de ações civis públicas em face da maior concessionária de serviço público de energia na América Latina, a AES ELETROPAULO Metropolitana Eletricidade de São Paulo. Atuando em vinte e quatro municípios da região metropolitana da Capital, a empresa foi alvo de questionamento quanto à regularidade de seus procedimentos no que toca ao combate a condutas fraudulentas por parte de alguns usuários, que irresponsavelmente promovem a adulteração do registro real de seu consumo de energia.

Em suma, o que se discute nas ações que foram ajuizadas, é a legalidade da suspensão do fornecimento de energia quando da constatação, por parte da concessionária, de fraude nos centros de medição de responsabilidade dos usuários, embora todos os procedimentos adotados pelas empresas concessionárias de serviços públicos estejam respaldados por normas emanadas pelas respectivas Agências reguladoras federais.

Vale destacar que muitas destas ações, em especial as promovidas em face das concessionárias de serviços públicos, possuem em seu pólo ativo o Ministério Público cuja função primordial nada mais é senão a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127 da Constituição Federal). E continuam os arts. 6º, 7º e 8º da Lei da Ação Civil Pública ao disporem que a instituição tem o dever de iniciativa de proteção de tais direitos, bem como o de realizar todas as manobras possíveis para a preservação desses interesses, como por exemplo, a instauração de inquérito civil.

Entretanto, em que pese a expressa previsão constitucional de todos esses poderes, não há que se permitir o ajuizamento de lides temerárias e sem o embasamento legal devido.

Nesse ponto, vale ressaltar que a Constituição Federal diferencia “consumidor” do “usuário de serviço público”. O primeiro tem seu regramento previsto no art. 5º, XXXII, da Carta Magna, e art. 48 do Ato das disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), sendo que o segundo é retratado pelos arts. 175, § único, II, e 37, § 3º.

Dessa feita, patente a distinção entre as duas categorias, ou seja, de um lado os consumidores e, de outro, os usuários de serviço público, de forma que ambos não se confundem. Conseqüência imediata de tal fato é que as ações promovidas em face da concessionária de energia elétrica, por exemplo, padecem de defeito insanável, uma vez que dada a premissa de que as ações civis públicas dirigem-se à proteção do direito de consumidores, impossível a utilização do instrumento por sujeitos que não se enquadram nessa definição legal.

A verdade é que, em não havendo até os dias atuais previsão legislativa especial para os denominados “usuários de serviços públicos”, não deve ser aceita a ação civil pública em matéria de direitos individuais homogêneos de usuários de serviços públicos, pois estes não se equiparam juridicamente aos consumidores.

Não é de se cogitar a vigência de decisões proferidas nessas ações, portanto, uma vez que baseadas em equívoco que implica elevada indagação técnica, pois evidente o desvio da finalidade do instrumento.

Dessa forma, espera-se que o Judiciário, ante o caráter extraordinário da matéria, interprete as normas aplicáveis à questão do modo mais cauteloso e construtivo possível, a fim de se evitar prejuízos oriundos de equívocos técnicos inadmissíveis e que refletem, como conseqüência, danos a toda uma sociedade usuária de serviços que ao final pode vir a arcar com os reflexos de decisões judiciais emanadas por uma interpretação e um embasamento equivocados em sua origem.

1Art. 2º do Código de Defesa do Consumidor. “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.”

2 Art. 5º. A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios. Poderão também ser propostas por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação que: I – esteja constituída há pelo menos um ano, nos termos da lei civil; II – inclua, entre suas finalidades, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, ou ao patrimônio artístico, histórico, turístico e paisagístico.”

Art. 5º. XXXII. O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.

Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação desta Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.

Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. § único. A lei disporá sobre: (omissis) II. Os direitos dos usuários.”

Art. 37. § 3º. A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública, direta e indireta (…)

Fonte: Almeida Advogados
Andréa Seco

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